Dirigido por Jordan Peele
PODE CONTER LEVES SPOILERS TEMÁTICOS. BEM LEVES MESMO.
No dia seguinte em que assisti Maligno, fui ver o novo filme do Jordan Peele, Nós (Us, no original) e a vergonha pelo primeiro só aumentou. Isso aqui sim é um filme de terror que merece atenção e destaque.
Após o excelente terror com uma crítica ácida ao racismo, Corra!, Peele conseguiu mais uma vez mesclar uma história surrealista a la "Além da Imaginação", com o universo do horror e ainda colocar, desta vez não apenas uma mas algumas criticas sociais no meio disso tudo. Podemos facilmente dividir esse filme em dois. O da trama em si e o do lado metafórico. O sucesso é atingido nos dois casos.
A história traz um tema já fantástico pela sua premissa. Uma família tem sua casa invadida por pessoas idênticas a eles mesmos. Não busque muita razão nesse filme. Muito menos explicações científicas ou muito detalhadas. Você não vai encontrar. E Jordan Peele já nos prepara para isso antes mesmo da primeira cena, com um texto dizendo que não sabe-se direito o que se passa nos diversos túneis subterrâneos que existem nos EUA. Se formos pegar vários filmes B de sci-fi/terror, principalmente das décadas de 70, 80 e 90, era muito comum a grande justificativa para a ameaça do filme ser a de que o mal (seja em forma de mutantes deformados ou animais assassinos) sempre vem do esgoto. É Peele nos dizendo que estamos entrando na "zona da imaginação". Após esse textinho, a primeira cena de Us mostra uma TV e nas prateleiras do lado estão algumas fitas VHS (o prólogo se passa em 1986). Um dos filmes ali é C.H.U.D., um filme de terror trash de 1984, no qual seres mutantes saem dos esgotos de NY e atacam a população. Esse é o primeiro de vários "sagazes" easter eggs do filme, que te ajudam a imergir nesse mundo onde "tudo é aceitável".
O filme segue mantendo uma linha narrativa muito auto consciente e focada no que se propõe. O primeiro ato servindo de apresentação de personagem, com um clima leve e cômico, mas nunca perdendo o ar de estranheza do que está por vir. É um suspense muito bem montado. Quando entramos no segundo ato, nos deparamos com um filme de "home invasion" que bota muitas tentativas atuais de criar algum nível de tensão no chinelo. Impossível não lembrar de Funny Games do Michael Haneke. Como se não bastasse os tremeliques de nervoso que sentimos até aí, entra o terceiro ato que eleva essa história para um nível a mais, não só em termos de mistério e tensão mas também como trama. O roteiro se amplia, e as coisas ficam mais loucas e intensas.
A direção acompanha direitinho o roteiro ousado. Cada um desses gêneros (comédia e terror) se combinam de forma que se complementam. O terror é muito bem fotografado, utilizando-se muitas vezes de planos abertos com grandes angulares (estilo John Carpenter), trazendo um maior detalhamento dos ambientes e aumentando a intensidade da sensação de impotência dos personagens. As piadas aqui não param o filme para te fazer rir. Mas sim aliviam um pouco do nervosismo e te ajudam a se apegar mais ainda à família central.
As atuações, principalmente, de Lupita Nyong'o e Shahadi Wright Joseph são de cair o queixo. As duas, assim como todo o elenco, tem que interpretar duas versões de si. Uma boa e carismática e uma ruim e assustadora. É impressionante o controle que a atriz mais nova tem. Te mete medo com o olhar psicopata e te faz criar um carinho enorme com seu sorriso acalentador. Já Lupita, além de causar arrepios com sua versão do mal, possui uma tarefa a mais, que envolve o plot twist do filme. É uma atuação extremamente complexa e que já lança o holofote para um possível Oscar 2020.
Quanto ao filme metafórico, é realmente chocante a riqueza em detalhes e importância de cada um dos elementos que somos apresentados. Tudo tem um porque. Tudo tem um propósito mais para a frente. Os simbolismos e signos estão soltos pelo filme inteiro. Cada uma das escolhas do diretor possui um conceito elaborado, que não só justifica a história em si como também significa além. Jordan Peele foca sua critica agora na psique humana e materializa a questão de que "todos possuímos um lado ruim". Ele coloca isso em um âmbito político extremamente atual que os EUA (e todo o mundo, por que não?) vive. A crítica ao sistema e a xenofobia é mais complexa do que parece, pois além de apontar o dedo também faz uma auto-crítica. Como tratam os que vem de fora e como os enxergam. Us e U.S. Camadas e mais camadas. E claro, no decorrer do filme, sem tirar o foco da mensagem principal, vemos alfinetadas ao racismo, machismo e ao fanatismo religioso. Não sobra pra ninguém em Us. É completo na mensagem que quer passar.
Independente do didatismo da vilã ao explicar o que acontece no final, Us é farto em subtextos e textos. É uma salada com tudo que tem direito. Comentários sócio-políticos, terror, comédia, uma trama conspiratória vintage, elementos que possuem representações que vão além do filme, plot twists da escola Shyamalan (infelizmente bastante previsível), inúmeras referências à clássicos que o inspiraram (a música dos créditos iniciais me traz The Omen à cabeça) e algumas cenas e imagens memoráveis, como a dança perto do final, com a música tema do trailer.
É gostoso demais sentir o frio na barriga de tensão ao assistir esse filme. É gostoso demais me pegar pensando no filme mesmo o tendo assistido há dias. São tantas vertentes de pensamentos críticos e tantos detalhes narrativos que só nos causa espanto pensar que esse filme é tão abundante assim. Nós merece ser visto e revisto inúmeras vezes. Os pouquíssimos defeitos passam quase desapercebidos. Jordan Peele veio pra ficar no gênero.
O melhor filme do ano até então. Corram para assistir. Agora!
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